Juízes absolvem motoristas bêbados (por causa da nova lei seca)
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.
Estou no professorLFG.com.br | Twitter: @professorlfg
O G1 (http://g1.globo.com/carros/noticia/2014/04/com-nova-lei-seca-juizes-absolvem-motoristas-flagrados-no-bafometro.html) divulgou o seguinte (14/4/14, 10h44): "Com nova lei seca, juízes absolvem motoristas flagrados no bafômetro; Lei endureceu multa e aumentou prisões, mas ainda libera embriagados. Associação critica entendimento e pede tolerância zero a álcool no volante".
O que mudou com a Lei 12.760/12 (comentada por nós no nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013)? Antes, bastava a concentração de 6 decigramas de álcool no sangue para a caracterização do crime de embriaguez ao volante; agora a lei exige essa concentração de sangue mais "alteração da capacidade psicomotora".
Tecnicamente falando: antes o crime era de perigo abstrato presumido (presume-se o perigo diante da embriaguez); agora é de perigo abstrato de perigosidade real, ou seja, além da embriaguez, é preciso provar no processo que o motorista estava com sua capacidade psicomotora alterada.
Como provar isso? Para não ficarmos no subjetivismo, basta uma conduta objetiva concreta reveladora da alteração dessa capacidade. Por exemplo: dirigir em ziguezague, na contramão, passar o sinal vermelho, subir calçada, bater numa árvore, dar cavalo-de-pau etc. Basta isso.
Não é preciso nenhuma vítima concreta. Não se trata de crime de perigo concreto. Não é preciso gerar nenhum acidente. Não é preciso lesar nenhuma outra pessoa. Não é preciso ter gente no local dos fatos na hora da condução perigosa.
Entre a figura do perigo abstrato presumido (que é inconstitucional) e o perigo concreto (que exige vítima concreta) existe o meio termo, que é o perigo abstrato de perigosidade real. A confusão generalizada na mídia e na cabeça do povo está ocorrendo por desconhecimento dessa técnica do direito penal (explicada no nosso livro). De outro lado, para a mídia e para o povo a única punição que é entendida como tal é a prisão. Tudo que é diferente da prisão não seria punição. Grave erro da mídia e do povo.
Por que o legislador passou a exigir a alteração da capacidade psicomotora? Para diferenciar o crime do art. 306 da infração administrativa do art. 165 do CTB. Para esta, basta dirigir embriagado (basta a prova da embriaguez). Para aquele é preciso prova da embriaguez + prova da alteração da capacidade psicomotora.
A legislação penal é dura? Uma das 12 mais severas do planeta. Introduziu a tolerância zero e prevê penas administrativas e penais duríssimas. Nenhuma quantidade de álcool é permitida (salvo casos irrisórios, decorrentes de enxaguantes bucais, por exemplo). Nenhum motorista bêbado deveria escapar (se houvesse excelente fiscalização). Juridicamente nenhum escapa, porque ou está enquadrado na infração administrativa ou no campo penal.
Qual a diferença entre eles? A infração administrativa só exige prova da embriaguez e é punida com multa de quase 2 mil reais, perda da carteira por um ano + apreensão do veículo. O crime exige prova da embriaguez + prova da alteração da capacidade psicomotora (dirigir em ziguezague etc.). Pena: todas as citadas, mais prisão de 6 meses a 3 anos. Para incidir a pena de prisão (que é muito grave) é preciso que corra um crime. Sem este, as penas são administrativas (e são duras). A desgraça é que o povo e a mídia entendem como punição exclusivamente a prisão. Essa é a desgraça. Desgraça lançada no final do século XVIII e começo do século XIX pelo sistema penal burguês, que começou a mandar todo proletário para a cadeia. Aí o povo passou a entender que punição é cadeia. Fora dela, não é punição. Errado entendimento.
As penas administrativas são duras. Se fossem aplicadas sem trégua, as mortes diminuiriam. Entre o sistema da pena aplicada de forma certa e infalível (sistema de Beccaria) e o sistema da pena desproporcional, irracional e desequilibrada que quase nunca é aplicada, optamos por este último. Daí a quantidade exorbitante de mortes no Brasil (mais de 43 mil por ano).
Quando as associações médicas pedem mais eficácia da lei, não estão erradas. É isso que todo mundo quer (mas que não acontece no nosso país por falta de fiscalização). Para suprir uma deficiência do Estado (na fiscalização), mídia e povo passam a exigir a aplicação errada da lei (entendendo que tudo é crime). Nem tudo é crime. Alguma coisa é administrativo, outra é crime.
Quem está fazendo essa distinção? Os juízes e tribunais, que são os aplicadores da lei. Se a lei distinguiu as coisas, os juízes devem seguir a lei. O problema não está na lei (que escreveu uma das mais duras do planeta). O problema não está nas penas (que estão entre as mais severas do mundo). O problema não está nos juízes (que estão aplicando corretamente a lei, distinguindo o que é administrativo e o que é penal). O gravíssimo problema dos países capitalistas selvagens que contam com mídia e povo embrutecidos é o seguinte: primeiro o capitalismo selvagem suga quase tudo e deixa o Estado mínimo quebrado; depois se exige que ele seja eficiente na fiscalização. Como? Com os recursos escassos que possui. Onde a mídia e o povo não são embrutecidos, a lei tem império certo e as mortes diminuem drasticamente.
Os países de capitalismo evoluído, distributivo e altamente civilizado (Dinamarca, Suécia, Holanda, Bélgica, Nova Zelândia, Islândia etc.) caracteriza-se pela excelente taxa de escolaridade dos seus habitantes, pouquíssimos analfabetos (em razão da educação de qualidade para todos), baixa taxa de violência (menos de 3 homicídios para cada 100 mil pessoas), baixíssima taxa de mortes no trânsito (0,17 em média para cada mil veículos e 7,7 pessoas para cada 100 mil habitantes), excelente posição no IDH (pertence ao grupo do IDH muito elevado), altíssimo uso das tecnologias, as questões sociais são problemas do Estado e da sociedade (não da polícia), não apresenta escabrosas e chocantes desigualdades (possui o indicador GINI médio de 0,31) e os trabalhadores normalmente recebem média, alta ou altíssima renda per capita. São, ademais, países que contam com efetivo (nunca absoluto) controle da corrupção.
E o Brasil, com seu capitalismo selvagem?
Os países do primeiro grupo (IDH muito elevado = países de capitalismo evoluído e, normalmente, distributivo e civilizado) matam muito menos no trânsito (média de 0,17 para cada mil veículos ou 7,7 mortes para cada 100 habitantes). Os números dos grupos seguintes (IDH elevado, médio e baixo) são: 0,81 e 16,2 (segundo grupo), 2,80 e 18,4 (terceiro grupo) e 22,38 e 20,6 (quarto grupo). O Brasil mata 0,66 para cada mil veículos (perto da média do segundo grupo) e 22 pessoas para cada 100 mil (no quarto grupo). Em síntese, somos muito violentos. Veja os dados no site do Instituto Avante Brasil no link:
Os países com os melhores IDH´s apresentam baixíssimas taxas de mortes no trânsito, com exceção dos Estados Unidos, país com a maior frota de veículos do mundo e alta incidência de violência (quando comparados com essa elite de dez países). Já entre os países com baixos IDH´s, como Níger, República Democrática do Congo, Moçambique, Chade, Burquina Faso, Mali, Eritréia, República Centro Africana, Guiné e Burundi, os piores do índice, as taxa de mortes no trânsito alcançam números altíssimos, tanto por 100 mil habitantes, como por 1 mil veículos.
O Brasil, quando comparado com os países do primeiro grupo do IDH, é uma nação fracassada. A causa principal é o capitalismo selvagem (extrativista e patrimonialista), que não tem nada a ver com o capitalismo distributivo das nações avançadas e prósperas como Noruega, Austrália, Holanda, Alemanha, Nova Zelândia, Irlanda, Suécia, Suíça e Japão etc.
A prevenção de acidentes e de mortes no trânsito passa por seis eixos: 1) Educação, 2) Engenharia (das estradas, das ruas e dos carros), 3) Fiscalização, 4) Primeiros socorros, 5) Punição e 6) Consciência cívica e ética do cidadão (EEF + PPC).
O gigante inacabado chamado Brasil apresenta sérios problemas no funcionamento de todas as instituições assim como nos seis eixos citados. O sistema educacional é um dos mais deploráveis do planeta (últimas colocações no PISA). Grande parcela dos carros é insegura e as estradas são esburacadas e mal sinalizadas. O Estado negligencia na fiscalização, os primeiros socorros são demorados e a punição é muito falha. O brasileiro, no volante de um carro, em muitos casos, é um bárbaro mal educado, bêbado e sem precaução (o céu, para ele, não é o limite, é o escopo). Todos os ingredientes da salada mortífera são abundantes. Resultado: perto de 43 mil mortes por ano. Solução: educação de qualidade em período integral para todos, mais forte redistribuição de renda (melhor renda per capta) e rápida diminuição nas desigualdades, começando pelas educacionais e socioeconômicas.
Artigo do Jurista e Professor Luiz Flávio Gomes | Contato para Entrevista, Opinião Jurídica e Palestras
11 991697674 (também por Whatsapp) - Soares Netto - Assessor de Comunicação e Imprensa.
Análise está muito bem delineada. A despeito disso, quando trazemos o problema somente para os índices de acidentes que têm como principal fator de contribuição o álcool, resta bastante claro que existe uma alienação do Legislador, na medida em que prevê penas duras e deproporcionais em relação ao sistema em que estão insertas. Antes do advento da lei 12.760 o problema estava na produção de provas, já que havia elementar objetiva do tipo exigindo a comprovação dos 6 decigramas para a caracterização do crime. Agora a questão tarifada foi superada, mas há necessidade da exteriozação do comportamento ameaçador para que esteja o condutor inserido no tipo previsto no art. 306. Ou seja, houve em certa medida a esterilização da norma penal nessa quadra. Se o povo entende que punir é prender, parece-me que o legislador e alguns do judiciário entendem que punir, na seara do trânsito, é aplicar "pesadas" multas e medidas administrativas.
ResponderExcluirResta bastante claro que os valores estão em desalinho. Para a elite pensante, que governa, incomoda a prisão por "algumas doses" (apesar das 43 mil mortes instantâneas!), bastaria a multa. Enquanto para os idiotas (concepção grega do termo) a brutalidade deve resultar no encarceramento. Nesse caso concordo com os que defendem a prisão. Como bem apontado pelo ilustre professor, a educação é a solução. E acrescento, ela, a educação possui vários matizes. Apesar de boa parte das respostas desaguar invariavelmente nos bancos escolares, entendo que a prisão seja a medida educativa de curto prazo correpondente à falta de civilidade e a postura criminosa que temos em nosso trânsito. Em diversos artigos lembro que o ilustre professor criticava a lei anterior por igualar situações distintas ao estabelecer a embriaguez presumida pela concentração. Segundo ele, havia a necessidade da exteriozação de um comportamento perigoso. Por esse viés parece-me que o legislador resolveu o problema, apesar de ter descalibrado na pena, pois há casos em que as sanções culposas ficaram mais severas que as dolosas. Fica evidente que a norma jurídica está muito mais reativa, pontual e rasa. Características que mostram elevado grau de esquizofrenia do legislador ordinário.