André Azevedo: Artigo sobre Ciclomotores


A OMISSÃO DO LEGISLADOR E A MARGINALIZAÇÃO DOS
CICLOMOTORES
por André Luiz de Azevedo


O trânsito no Brasil tem ganhado nos últimos anos contornos trágicos, que remontam, quando conhecidos os números de feridos e mortos, verdadeiras guerras civis. Há alguns traços de comportamento que indicam os vilões dessa tragédia anunciada e vivenciada todos os dias. Destaque para a falta de estrutura educacional para lidar com as regras estabelecidas pela Lei 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e para a cultura praticada durante anos no Brasil e em outros países de relegar às leis de trânsito um papel secundário.

A presente explanação presta-se a apontar divergências no alinhamento entre alguns capítulos do CTB, que fazem obscuras determinadas regras e tornam a tarefa de cumprir e fazer cumprir a lei de trânsito um exercício hercúleo, e muitas vezes estéril, de aplicação de regras de interpretação. O caso em análise é o dos ciclomotores, que possuem como definição: “veículo de duas ou três rodas, provido de um motor de combustão interna, cuja cilindrada não exceda a cinquenta centímetros cúbicos (3,05 polegadas cúbicas) e cuja velocidade máxima de fabricação não exceda a cinquenta quilômetros por hora”.

Movidas pelas recentes ondas de incentivo ao consumo, as aquisições desses veículos deveriam trazer preocupação às autoridades, sobretudo pela omissão do legislador ordinário, que não realizou as adequações necessárias à viabilização da fiscalização, criando sérios embaraços ao controle nas ruas desse fenômeno comercial. 

A primeira análise é do texto do artigo 57 do CTB, que assevera in verbis:

Art. 57. Os ciclomotores devem ser conduzidos pela direita da pista de rolamento,
preferencialmente no centro da faixa mais à direita ou no bordo direito da pista
sempre que não houver acostamento ou faixa própria a eles destinada, proibida a
sua circulação nas vias de trânsito rápido e sobre as calçadas das vias urbanas.

Para o artigo em testilha deve-se observar que o legislador fala em “pista de rolamento”, não fazendo qualquer distinção entre as espécies de vias existentes. Contudo, veremos mais adiante que na correlação entre essa regra de circulação e a consequência da sua violação o autor já menciona a hipótese de vedar a circulação dos ciclomotores em vias de trânsito rápido e rodovias, as quais possuem como características diferenciadoras a velocidade máxima, tarifadas respectivamente em 80 km/h e 110 km/h.

Se considerarmos que o CTB, assim como as demais normas, integram o sistema legal, concluiremos que deve haver por parte dos operadores do direito uma visão sistêmica, a fim de que se garanta o alcance pleno da norma. A análise do artigo 244, §1º, “b”, do mesmo diploma lança um pouco mais de luz sobre o tema, conforme se pode inferir da letra da norma:

Art. 244. Conduzir motocicleta, motoneta e ciclomotor: (grifo nosso)
§1º [...]
b) transitar em vias de trânsito rápido ou rodovias, salvo onde houver acostamento ou faixas
de rolamento próprias;
§ 2º Aplica-se aos ciclomotores o disposto na alínea b do parágrafo anterior:
Infração - média;

Diante desse conjunto é certo afirmarmos que o legislador estabeleceu como regra a proibição da circulação de ciclomotores em vias de trânsito rápido e rodovias. Contudo, contemplou exceções, quais sejam: a existência de faixa exclusiva e/ou acostamentos. Uma análise mais ampla indica que essas são exceções de situações que em si já são excepcionais, pois a livre circulação só é regra em vias cuja velocidade máxima não exceda 60 km/h.

Há indícios de que vendedores de ciclomotores estejam induzindo jovens a comprar esses veículos, afirmando que há uma “facilidade” para transitar. Segundo eles, não haveria necessidade de ser o condutor habilitado e nem a necessidade de licenciamento do veículo

A partir desse ponto dedicaremos algumas linhas para mostrar o equívoco dessa assertiva. É necessário reconhecer que tais situações revelam que de fato há dificuldades para que os órgãos competentes para a emissão, tanto da Autorização para Condução de Ciclomotor (ACC), quanto do Certificado de Registro e Licenciamento de Ciclomotores (CRLC), consigam dar efetividade à norma.

Olhando além da letra fria da lei, trazendo para o bojo da regulamentação do comportamento em comento as resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), que por deferência legal é o órgão máximo normativo e consultivo do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), dá uma dimensão mais precisa dos óbices mencionados. 

É competência dos órgãos executivos estaduais, por delegação do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), a emissão de Autorização para Condução de Ciclomotores (ACC), bem como de outros documentos de habilitação. Tal conclusão decorre da uma análise integrativa das normas insculpidas no art. 22, II (CTB) e art. 141 caput (CTB) c/c art. 4º da Resolução nº. 192/2006/CONTRAN e do art. 1º, I da Resolução nº. 205/2006/CONTRAN, os quais seguem in literam:

Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito 
Federal, no âmbito de sua circunscrição:
I - […]
II - realizar, fiscalizar e controlar o processo de formação, aperfeiçoamento, reciclagem e 
suspensão de condutores, expedir e cassar Licença de Aprendizagem, Permissão para Dirigir
e Carteira Nacional de Habilitação, mediante delegação do órgão federal competente;
Art. 141 (CTB). O processo de habilitação, as normas relativas à aprendizagem para
conduzir veículos automotores e elétricos e à autorização para conduzir ciclomotores serão
regulamentados pelo CONTRAN. (grifo nosso)

Tendo em vista que os artigos acima remetem a regulamentação da emissão dos documentos de habilitação ao CONTRAN, há que se analisar o contido na Resolução nº. 192/2006, a qual regulamenta a expedição do documento único da Carteira Nacional de Habilitação, com novo leiaute e requisitos de segurança. O artigo 4º do referido diploma traz as regras para a emissão da ACC:

Art. 4º Será acrescentada uma caixeta “ACC” que deverá ser impressa com a informação “ACC” usando as mesmas fontes dos demais campos, na cor preta ou deverá ser hachurada, quando não houver esta autorização de habilitação, sendo a “ACC” e a Categoria “A”
excludente, não existindo simultaneamente para um mesmo condutor. (grifo nosso)

Além da regulação para a emissão do documento de habilitação, o CONTRAN trata como obrigatório o porte da autorização, que apesar do nome, possui natureza de licença, tendo em vista que todos os atos praticados pelo poder público no que tange à emissão ou suspensão do documento devem estar previstos em lei, sendo sua natureza vinculada. A obrigatoriedade está mencionada no artigo 1º, I da Resolução nº 205/2006 – CONTRAN:

Art. 1º. Os documentos de porte obrigatório do condutor do veículo são:
I – Autorização para Conduzir Ciclomotor - ACC, Permissão para Dirigir ou Carteira
Nacional de Habilitação - CNH, no original;

A questão da necessidade de estar o condutor habilitado afasta uma série de mitos acerca da utilização marginalizada dessa espécie de veículo. Contudo, a necessidade de portar o CRLC mostra-se tormentosa na legislação. Há dois grandes problemas que acabam por dificultar o cumprimento desse comando normativo. A omissão do legislador, na Resolução nº. 205/2006 – CONTRAN, quando não incluiu o CRLC como documento de porte obrigatório. E o grande número de municípios que sequer integram o SNT. E que, portanto, não possuem lastro técnico, bem como legitimidade, para realizar fiscalizações de trânsito e sequer emitir certificados para os quais a lei lhes deferiu competência. No caso em tela as competências estão previstas nos artigos 24, XXVII c/c 129, ambos do CTB.

Apesar de haver previsão legal, tanto para o uso da ACC, como do CRLC, há sérios problemas estruturais que impedem a operabilidade das normas atinentes à circulação dos ciclomotores. Fatos que contribuem sobremaneira para a fragilização da fiscalização e, por consequência, catalisam a sensação de impunidade. Se considerarmos que estamos na década da ação para redução de acidentes e mortes no trânsito, decretada pela Organização das Nações Unidas (ONU), para o período 2011 - 2020, o problema ganha musculatura e expõe a política nacional de segurança no trânsito.

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